Pelo amor às diferenças
Esta pequena compilação de textos, escritos em momentos bem diversos, é dedicada à minha filha Maria Teresa. Confrontada com uma grande adversidade mesmo antes do seu nascimento, não conseguirá, muito provavelmente, compreender o esforço que faço para minimizar o sofrimento por que passam as pessoas como ela.
PREFÁCIO
Os textos reunidos neste livrinho, alguns deles histórias muito singelas, mas sempre de uma grande ternura, escritos numa linguagem simples, acessível, despretensiosa, revestem-se de um enorme significado para todos os que estão engajados ao ideal da discriminação positiva e da valorização das diferenças das pessoas com deficiência.
Ninguém melhor do que o Dr. Miguel Palha para falar de afectos. É bem conhecida a intensidade e a qualidade da sua ligação afectiva à Maria Teresa, sua filha dilecta. Juntos, fazem, como nós psicólogos gostamos de dizer, uma díade modelar, incomparável, Mas engana-se quem julga que o pai é o elemento dominante nesta adoração mútua. Não, a verdadeira chama, a alma deste fluxo afectivo intenso e invulgar é a Maria Teresa, que, com a sua peculiar maneira de ser, dá cimento a esta relação única.
E é exactamente por isso que ele fez agora publicar estas belíssimas histórias de amor.
Lisboa, Janeiro de 2011
Luísa Velez Cotrim
Psicóloga Educacional
Presidente da Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21
A descoberta, no bebé, de uma doença associada a uma situação de deficiência grave deve ser comunicada aos pais com muito cuidado e sensatez, dado ser um assunto que se reveste do maior significado emocional. A revelação, aos pais, de que o bebé tem estigmas de uma doença grave, deve ser feita pelo pediatra, em ambiente de estrita privacidade, e só após se ter estabelecido um bom vínculo afectivo entre os pais e o filho, de forma a reduzirem-se as possibilidades de rejeição A informação deve ser simples e adequada às condições sócio-culturais dos pais e da família. Sempre que possível, os profissionais devem enfatizar as capacidades e não as dificuldades das pessoas com deficiência. O contacto do bebé com a mãe, com o pai, com os irmãos, com os outros familiares ou amigos, à semelhança do que acontece com qualquer outro recém-nascido, deve processar-se de uma forma natural.
Mas a realidade é muito estranha. Mesmo quando o pediatra cumpriu, de uma forma exemplar, todos os preceitos anteriormente mencionados, informando os pais de uma forma irrepreensível, não é raro que estes demonstrem uma grande insatisfação pela forma como a notícia foi dada. Logo após a revelação de que o bebé tem uma doença grave, os pais experimentam um sentimento de profunda tristeza, angústia e sofrimento. Em conjunto, de uma forma cúmplice, os pais imaginaram e sonharam, muito antes de iniciada a gestação, com um bebé saudável, bonito e muito perfeito. A notícia de que o bebé terá, com toda a probabilidade, um défice cognitivo (designação preferível, por vários motivos, às anteriores terminologias de atraso mental e de deficiência mental), ainda por cima acompanhado de estigmas físicos evidentes e indisfarçáveis, causa, de um modo geral, um profundo desgosto. É um período indescritivelmente difícil e os pais precisam de muito apoio. Frequentemente, os pais desejam que o bebé não consiga sobreviver à infecção, à doença respiratória ou à doença cardíaca (não é raro que verbalizem estes sentimentos). Posteriormente, há uma tentativa de negação do diagnóstico: o bebé é parecido com a mãe ou com o pai ou com qualquer outro familiar; é mais um dos frequentes enganos médicos, já que ele não parece apresentar os habituais sinais da doença: é muito activo, mama com muita força, está muito interessado pelo ambiente circundante e até já consegue segurar, de forma incipiente, a cabeça (coisas que os irmãos ou primos só fizeram muito mais tarde).
Mas, infelizmente, os erros médicos relativos a diagnósticos de doenças graves são pouco frequentes, e os pais, com mágoa, vão-se consciencializando da veracidade e da inevitabilidade do diagnóstico.
Então, revoltam-se contra tudo e contra todos: contra o pediatra que não foi humano nem delicado a dar a notícia; contra aquela senhora que, na maternidade, partilha o mesmo quarto, e que deu à luz um recém-nascido perfeito, fruto de uma gravidez indesejada e não vigiada; contra a falta de humanidade e de sensibilidade dos profissionais de saúde, que parecem mostrar uma total indiferença face à sua tragédia; contra o obstetra que não conseguiu prever esta situação; contra os amigos que não conseguem disfarçar um intolerável sentimento de piedade; contra a falta de condições da maternidade; contra os políticos que não propõem medidas eficazes para minimizar o sofrimento das pessoas com deficiência e das respectivas famílias; contra Deus que, sem quaisquer critérios plausíveis ou perscrutáveis, permite a gestação e o nascimento de crianças doentes, defeituosas e totalmente desprotegidas. Mas, lentamente, progressivamente, os pais vão descobrindo que o bebé é, afinal, como os outros. E começam a achar o bebé bonito. E começam a encontrar semelhanças físicas com um qualquer familiar. E notam que a avó começa a gostar muito do bebé e que inventa mil e uma razões para o pegar ao colo. E notam que os amigos já brincam com o bebé sem ser por obrigação ou por piedade. E ficam maravilhados com as trocas do olhar durante os raros períodos de alerta do bebé. E, a todo momento, tiram fotografias e fazem vídeos. E, quando mais tarde, se dirigem ao infantário, todas as educadoras e auxiliares da instituição interrompem o seu trabalho, de uma forma espontânea, e vêm ver o novo bebé de que já tinham ouvido falar. E, expondo os habituais argumentos profissionais, todas as Educadoras disputam, aberta e activamente, a recepção do bebé.
E quando a Directora toma a decisão, a educadora escolhida não cabe em si de contente, embora a sua colega preterida não consiga esconder uma lágrima. E os pais, comovidos, formulam a inevitável pergunta ao pediatra: “- O bebé é um caso bom, não é Sr. Dr.? ” A magia deu-se. Os pais iniciam, agora, um lento processo de aceitação e começam a sentir-se melhor com o bebé e, tal como os pais das outras crianças, contam, entusiasmados, a quem quer que seja, as últimas gracinhas e anotam, escrupulosamente, as mais recentes aquisições do desenvolvimento.
Compreendem que já não são mais os pais de uma criança deficiente e que o bebé, antes de tudo, chama-se e responde pelo nome de MANUEL ou de MARIA. Compreendem que o bebé é uma pessoa com vida própria, com afectos, com emoções, e que os estigmas físicos da doença correspondem, tão-somente, a aparências ou a aspectos meramente superficiais. Compreendem que, para além ou por detrás das aparências físicas, de um estado de doença, de vulnerabilidade ou de desvantagem, existe uma pessoa, como qualquer outra, que, em dimensões naturalmente peculiares, sabe rir, sabe chorar, sabe compreender, sabe sofrer, sabe pensar e sabe amar. Compreendem, em suma, que o bebé tem uma identidade e descobrem que adoram, até à loucura, o MANUEL ou a MARIA e que gostam tanto dele ou dela como dos outros filhos.
Há uns bons anos atrás, um homem, aí pelos trinta anos de idade, visivelmente transtornado, pediu-me para observar o filho que havia nascido três dias antes. Tinham-lhe dito, na maternidade, que o bebé era portador de Trissomia 21. A mulher, muito triste, pode dizer-se deprimida, estava sentada na sala de espera da instituição onde trabalhava e, completamente alheada do ambiente circundante, olhava, ainda incrédula, para o bebé, muito calmo, que dormia profundamente na alcofa. Alguém lhes tinha dito que eu acompanhava estas crianças. O bebé, chamado Francisco, era neto e sobrinho de reputados pediatras e eu percebi, de imediato, que não era procurado pelas minhas qualidades técnico-científicas, mas por ser pai, também, de uma rapariga com Trissomia 21.
Este fenómeno está amplamente descrito na literatura da especialidade. O pai do Francisco impressionou-me desde logo. Talvez pela aceitação muito precoce da doença do bebé. Ou talvez pela sua postura invulgarmente franca, determinada e recta. Nesse mesmo dia, o Francisco foi observado pela Cardiologia Pediátrica. Pouco depois, fomos informados de que o Francisco tinha uma doença cardíaca congénita muito grave. Esta notícia deixou o pai muito triste e consternado e o impacto da mesma foi claramente violento. O Francisco e o pai não me saíram mais da cabeça.
Como é muito comum nas crianças afectadas por esta doença, as infecções, sobretudo respiratórias, repetiram-se e o pai, aflito, telefonava-me com frequência. A maior parte das vezes, era a minha mulher quem atendia. Ela também é médica, embora de uma especialidade diferente, e consegue, quase sempre, solucionar, de uma forma satisfatória, os pequenos problemas. Mas com quem ele gostava realmente de falar, não sei bem sobre quê, era com a minha filha Maria Teresa. Lá se entendiam, sabe Deus como, por longos minutos. Uma vez, por causa de um congresso sobre Trissomia 21, realizado num fim de semana, fomos todos a Castelo Branco, cidade onde residiam. Durante o tempo disponível, esquecido de todos nós, ele, que era um dos organizadores da reunião, só brincou com a Teresa, genuinamente fascinado pela sua maneira de ser e também, tenho a certeza, pelas suas trapalhices. Por volta dos sete meses de idade, numa outra instituição hospitalar, o Francisco foi operado ao coração. Infelizmente, as coisas não correram da melhor maneira e o pós-operatório complicou-se. Foi uma lenta agonia com a duração de dois meses. Um dia, o pai telefonou-me e disse-me que o Francisco tinha morrido. De um modo geral, nestas ocasiões, tenho uma grande presença de espírito, mas, desta vez, comovido, fiquei completamente bloqueado e não consegui expressar-lhe uma única palavra de conforto. Após um longo silêncio, lá disse as coisas do costume. A maior parte das pessoas pensa que a morte de um filho com deficiência é um alívio. Poderá ser, de facto, um alívio, mormente de natureza social, se tivermos em conta a insegurança que a deficiência determina, sobretudo relacionada com o envelhecimento dos pais, mas a morte de um filho com deficiência, no plano afectivo e emocional, é sempre a morte de um filho. Nessa noite, nem eu nem a minha mulher conseguimos dormir um só instante. Tentei compreender o que este pai tinha de diferente. Para mim, para além da sua lhaneza, bondade, generosidade e de outros bonitos traços de carácter, foi talvez a sua imensa ternura pelo Francisco, aliada a uma grande capacidade para compreender, desde muito cedo, que a doença, inexplicável e vergonhosamente estigmatizada por muitas pessoas, era um aspecto meramente secundário ou acessório.
Uns meses depois, lá no hospital, o pai apareceu-me numa cadeira de rodas. Estava internado na Ortopedia devido a uma fractura óssea de origem traumática, relacionada com uma pega tauromáquica mal sucedida (disseram-me que ele era um dos mais conhecidos forcados do país). Estava angustiado e compreendi, de imediato, que alguma coisa não corria bem. Não adiantou, espontaneamente, quaisquer razões que me ajudassem a compreender o seu estado de alma e eu entendi que não era conveniente, nem prudente, naquela altura, conversar sobre o que o afligia. Fiquei preocupado. Inevitavelmente, falou-se do Francisco e mais uma vez fiquei impressionado pela sua invulgar postura moral. Prometeu-me que, mais tarde ou mais cedo, se iria fazer uma tourada para ajudar as crianças com Trissomia 21. Menos de doze meses depois, deitou mãos à sempre árdua tarefa de organizar o evento. Ainda tentei demovê-lo, mas a sua forte determinação venceu-me e convenceu-me. Coordenou uma equipa constituída por gente excepcional e generosa. Conseguiu-nos abrir inúmeras portas, algumas delas cronicamente encerradas. Dias antes da tourada, embora naturalmente apreensivo com o sucesso da mesma, pude verificar que tinha rejuvenescido e que estava bastante mais animado e positivo. Perguntei-lhe, então, como se sentia. “Sinto-me muito bem”. Fez uma curta pausa e continuou “mas tenho muitas saudades do Francisco”.
A bebé era linda. Apesar dos estigmas físicos da doença, a Madalena era linda de morrer. O pai, um promissor interno de cirurgia na altura, estava muito triste e decepcionado com a notícia da doença da Madalena. A mãe da Madalena, a Bibá, que eu não conhecia, impressionou-me desde logo. Talvez pela sua postura determinada e positiva. A Bibá, desde o primeiro momento, não deixou transparecer qualquer sinal de tristeza ou de revolta pela doença da Madalena e o amor pela bebé, forte e genuíno, foi deveras comovente. Na segunda consulta, já pelo mês de idade, ela estava literalmente maravilhada, enlevada podíamos dizer, com a Madalena. E nesta exuberância de afectos, a Bibá era bem secundada pelos avós da Madalena, sempre presentes e disponíveis. Pelos seis meses de idade, a Bibá contava, entusiasmada, a quem quer que fosse, e onde quer que estivesse, sem quaisquer constrangimentos, com uma alegria inexcedível, as últimas gracinhas e habilidades da Madalena, fazendo descrições tão pormenorizadas quanto graciosas. No início do segundo ano de vida, já com o pai da Madalena completamente refeito da decepção que experimentou pela doença da sua primeira filha, ocorreu um facto muito significativo: a adoração da miúda era tão intensa, que os irmãos mais velhos, crianças ainda pequenas, confessaram que gostariam de ter, também, um pouquinho de Trissomia 21. A atenção excessiva proporcionada a uma criança com problemas, sobretudo os relacionados com uma doença grave, é um fenómeno muito frequente e corresponde, ao fim e ao cabo, à concretização do ideal da discriminação positiva das crianças com diferenças. Depois de rectificada, de uma forma saudável e habilidosa, a distribuição de afectos por toda a prole, foram os irmãos, se calhar como ninguém, a compreender, pouco depois, sempre inspirados pelas atitudes e comportamentos da mãe, verdadeira fortaleza moral sempre presente, que os estigmas físicos da doença da Madalena correspondiam, tão-somente, a aparências ou a aspectos meramente superficiais ou secundários.
A Madalena foi sempre tratada de uma forma convencional. Exactamente como os irmãos. Frequentou as mesmas creches e escolas; foram-lhe impostas as mesmas regras educativas; frequentou as mesmas instituições desportivas; privou nos mesmos ambientes sociais; usufruiu dos mesmos períodos e espaços para férias; e recebeu, sempre, os mesmos mimos. Talvez um pouco mais intensos do que o habitual para a flor medrar melhor. Particularmente os proporcionados pelo Fernando, o marido da Bibá, hoje um destacado cirurgião.
A Bibá, a par das suas inúmeras ocupações, nunca deixou de ser generosa e solidária com as crianças com diferenças e suas famílias, participando, activamente, nos movimentos associativos que pugnam pela melhoria das condições de vida destas, sobretudo das mais carenciadas. E envolveu, sempre, com alegria e sem preconceitos, a figura da Madalena, dando um excepcional exemplo de abnegação e engajamento ao ideal da discriminação positiva das pessoas com deficiência.
Perguntam-me, muitas vezes, se há graus na Trissomia 21. Com efeito, não é possível falar, cientificamente, de graus, mas, antes, de uma enorme diversidade no desenvolvimento cognitivo, linguístico e social das pessoas com Trissomia 21. Todavia, em sentido figurado, pode afirmar-se que há dois graus, decorrentes da maneira como as famílias aceitam e amam as crianças que apresentam diferenças. O grau I tem, geralmente, um prognóstico reservado e corresponde às situações em que as crianças são incompreendidas e mal aceites. O grau II tem, quase sempre, um prognóstico excelente e correlaciona-se com as situações em que as crianças são amadas, compreendidas, aceites e não excluídas. Por esta razão, quando se pergunta quais são os melhores Centros de Desenvolvimento, quais são os melhores médicos, quais são os melhores psicólogos, quais são os melhores educadores e professores, quais são as melhores escolas, a resposta é: são os pais e uma família harmoniosa. É exactamente este o paradigma e o exemplo representado pela extraordinária Bibá e sua família.
Há uns tempos atrás, a meio de uma tarde muito trabalhosa de Verão, recebi uma notícia que me deixou profundamente triste e consternado: um filho da Judite tinha morrido. Não eram conhecidos mais pormenores. A Judite tinha quatro filhos, a mais velha dos quais com Trissomia 21. A Judite é uma pessoa excepcional, bondosa, solidária e extremamente activa no movimento associativo. Pensei, de imediato, que a Raquel, a filha com Trissomia 21, tinha morrido. Preparei-me, logo, para me dirigir à quinta da família, situada no Ribatejo, local onde tinha ocorrido a tragédia. Ainda passei na Associação a buscar oito técnicas da instituição.
Ao atravessarmos a ponte Vasco da Gama, soubemos mais pormenores. A criança que morreu chamava-se João e era o terceiro filho da Judite. Morreu afogado na piscina. Uma pequena distracção foi o suficiente.
Fiquei muito apreensivo. Antevi, logo, o que se iria passar no velório: “isto é uma injustiça: em lugar de morrer a Raquel, que é deficiente, Nosso Senhor chamou a si o mais perfeito e bonito dos irmãos”. As minhas oito companheiras de viagem aperceberam-se do meu estado de espírito. Até chegarmos à quinta, não trocámos, entre nós, uma única palavra. Foram momentos de grande aflição. Quem me conhece, sabe que eu não me calaria, se preferirem, não consentiria, mesmo num momento de grande contenção como aquele, qualquer reflexão, atitude ou acção que se constituísse numa discriminação negativa de uma criança com deficiência.
Quando chegámos à quinta, estive, pelo menos, cinco minutos dentro da furgoneta, sem conseguir sair. Enchi-me de coragem e dirige-me à Judite. Não lhe disse nada. Abracei-a, tão simplesmente. Julgo que ela também compreendeu o meu sofrimento e sensação de incomodidade. Ela conhece-me bem, designadamente os meus valores, e sabia que eu iria ser intransigente e que não toleraria quaisquer menções negativas à Raquel em particular ou à situação de Deficiência em geral.
Aproximei-me da sala onde decorria o velório numa grande tensão. Sentia, mesmo, o meu coração a bater em ritmo de galope. Quando entrei, fez-se um silêncio sepulcral. Não conhecia, pessoalmente, nenhum dos presentes. Senti que todos os olhares se fixaram em mim, provavelmente carregados de uma intensa revolta e ódio. Mas não, os meus receios, felizmente, eram infundados. A pouco e pouco, todos vieram falar comigo, sem quaisquer ressentimentos. E todos agradeceram o trabalho que temos vindo a fazer em prol das crianças com Diferenças. E todos se ofereceram, de uma forma ou outra, para colaborar, para trabalhar no âmbito do objecto da associação. Foi um grande alívio!
À noite, a Judite foi deitar os filhos. Pedi-lhe para a acompanhar. Mais uma vez, pude aperceber-me da sua incomparável dimensão moral e humana. Num estado de sofrimento indescritível, poucas horas após a morte de um filho, respondeu a todas as perguntas dos seus outros filhos, sossegando-os e mimando-os de uma forma verdadeiramente enternecedora. Quando a Raquel perguntou pelo João, a Judite respondeu-lhe que ele agora era um anjinho que estava no céu a olhar por todos eles. Afastei-me, nesta altura, profundamente comovido.
No regresso a Lisboa, tentei compreender o que aconteceu. Apesar de toda a tragédia que constitui a morte de uma criança, senti-me possuído de uma imensa plenitude. Esta atitude de respeito pelas diferenças, sem dúvida cultural, ou seja anti-natural, corresponde a uma efectiva modificação das mentalidades e dos valores da nossa sociedade, em que as pessoas vulneráveis, com incapacidades ou em desvantagem podem valer tanto como as outras.
Com a vigilância activa do João, lá do céu, a Raquel, maugrado a sua situação de grande vulnerabilidade física e psíquica, converter-se-á, tenho a certeza, numa mulher plena e totalmente independente.
Foi um choque que é impossível de descrever. Estavam comigo, na sala de partos, três colegas que ainda tentaram enganar-me, dizendo que, naquele momento, não era possível nem recomendável fazer diagnósticos. Mas pouco depois, uma das minhas colegas (com quem viria a trabalhar, na Unidade de Desenvolvimento do Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria), vendo-me muito ansioso e agitado, aproximou-se de mim e disse-me para eu me preparar para o pior. Era a terrível confirmação das minhas suspeitas e foi, sem dúvida, o momento mais difícil da minha vida. Pedi que a notícia fosse dada com a maior suavidade e sensatez à minha mulher e a médica pediatra coordenadora da Neonatologia assumiu, ela própria, essa responsabilidade. No exterior da sala de partos, estava a avó materna da Teresa. Ela adora crianças (como todas as avós, de resto) e a Teresa era o seu primeiro neto. Não foi nada fácil comunicar-lhe a doença da neta. Ficou visivelmente triste. Todavia, sofreu com uma grande contenção. Não esperava nada por uma notícia destas. Uns momentos depois, ainda sem ter visto a neta, disse-me, sem vacilar, que a Teresa iria ser o seu tesouro. Neste período, os meus pais tinham ido ao estrangeiro. Quando voltaram, não tive coragem de os enfrentar e de lhes falar. Foi o meu irmão mais velho que o fez. Durante uns minutos, a avó paterna chorou, mas, pouco depois, disse-me que a Teresa iria ser a sua neta preferida (na altura, só tinha netas). Nos primeiros meses de vida da Teresa, as avós instalaram-se lá em casa. A avó materna tentava adivinhar quais eram as nossas preferências gastronómicas. Cozinheira exímia, mimou-nos de uma forma extraordinária. As avós não sabiam mais o que nos fazer. Entretanto, começámos a descobrir a Teresa. Até nisto, as avós se conseguiram antecipar. Foram as primeiras pessoas a notar que a Teresa já sorria intencionalmente; que já conseguia segurar a cabeça; que já trocava o olhar, …(ainda hoje não sei se estas habilidades eram inventadas total ou parcialmente ou se, de facto, as avós têm capacidades especiais). Por necessidade e por desejo das avós, a Teresa frequentava diariamente as casas delas. Até aos três anos de idade, ficou em casa da avó paterna onde uma terceira avó tomou conta dela (era a velha criada dos meus avós e que me criou a mim e aos meus irmãos). Nos fins de semana, era, naturalmente, reclamada pela avó materna. A Teresa foi extraordinariamente mimada por todos. Era o centro de todas as atenções. Um dia, bastante doente, com uma pneumonia extensa e grave, teve de ser internada no Hospital. As avós ficaram muito tristes e apreensivas. Enquanto durou a fase crítica, mantiveram-se firmes e inabaláveis no átrio da urgência pediátrica, sem quaisquer preocupações pelo frio ou pelo grande desconforto do espaço. No momento da alta, eram as pessoas mais contentes e exuberantes. Quando foi iniciado o Programa de Intervenção, as avós quiseram (exigiram talvez seja a palavra certa) colaborar activamente. Repetiam e repetiam os exercícios diários e, muitas vezes, eram elas que acompanhavam a Teresa às suas consultas com a Psicóloga. Sempre que necessário, a miúda ficava de noite em casa das avós. Pelos três anos de idade, entendeu-se que era conveniente, por diversos motivos, programar o ingresso da Teresa num infantário (regular, obviamente!). Contactei uns quantos infantários. Quando tomavam conhecimento da doença da Teresa (estávamos em 1989), os responsáveis das escolas inventavam mil razões e desculpas para não a aceitarem.
Fiquei muito desapontado e desanimado. Era o ruir das minhas expectativas e dos meus ideais. Mal tomou conhecimento deste problema, a avó paterna calcorreou Lisboa inteira à procura de um infantário que aceitasse a Teresa. Deve ter sido muito persuasiva e obstinada. Conseguiu, nesse mesmo dia, arranjar colocação em seis infantários diferentes.
Quando a Teresa entrou para um destes infantários, as avós acompanharam minuciosamente o processo de adaptação e de integração. Passados uns tempos, tecendo algumas considerações relativas ao processo de integração escolar, desabafei com a avó paterna que a Teresa era posta de lado pelos pais dos seus colegas: só muito raramente era convidada para as festas de anos. No dia seguinte, logo de manhã, a avó foi ter com a directora do infantário e revelou-lhe as minhas preocupações. A directora, de imediato, contactou com muitos dos pais e o problema resolveu-se: a Teresa, como uma outra qualquer criança da mesma idade, passou a ir às festas de anos dos colegas. Hoje em dia, sempre que é preciso, como, por exemplo, quando temos de ir a uma reunião no estrangeiro, a Teresa fica em casa de uma das avós. Adora lá ficar. Nos Sábados, ela não prescinde de ir almoçar com a avó materna (que lhe prepara, sempre, uns pratos especiais) e não deixa de mostrar a sua contrariedade se optamos por quebrar a rotina. Talvez seja excessivamente protegida (julgo que é compreensível). Olhando para trás, não tenho dúvidas de que as avós se anteciparam no processo de aceitação da Teresa. Teria sido extremamente difícil lidar com um problema desta dimensão e dificuldade sem uma colaboração tão empenhada das avós. Como não podia deixar de ser, os seus vaticínios concretizaram-se. Gostam de todos os netos de uma forma igual. Mas a Teresa ocupa um lugar muito especial nos seus corações, apesar de uma delas ter optado por se manter em vigilância lá muito longe, no céu.
As primeiras referências científicas ao mongolismo remontam à segunda metade do século XIX, quando um médico inglês, de seu nome John Langdon Down, descreveu, em 1866, os casos de algumas crianças com uma aparência peculiar internadas num asilo de Surrey, a sul de Londres. John Down que, por razão do seu casamento, ainda era familiar afastado de Charles Darwin, célebre autor da então recente e revolucionária teoria sobre a Evolução das Espécies, apresentou uma interpretação curiosa: a ocorrência do mongolismo corresponderia a uma degenerescência racial (neste caso, as crianças caucasianas atingidas pela doença apresentariam características da raça mongol, considerada, à época, como inferior).
Durante as décadas seguintes, não houve grandes avanços científicos relativamente à doença. Responsáveis do Vaticano afirmariam, inclusivamente, que a ocorrência do mongolismo se deveria a comportamentos imorais das mulheres e que o nascimento de crianças afectadas por este mal corresponderia a um justo castigo divino.
Em 1959, é relatada uma descoberta de suprema importância científica: o mongolismo, ou síndrome de Down (em homenagem ao Dr. John Down), era uma doença genética provocada pela presença de um cromossoma 21 supra-numerário, pelo que a doença passou a designar-se, correctamente, por Trissomia 21 (ou seja, em vez dos habituais dois cromossomas 21, um proveniente do pai e outro da mãe, estas crianças apresentavam, em cada célula, três cromossomas 21). Esta descoberta, protagonizada pelo então jovem geneticista francês Prof. Jerôme Lejeune, da Universidade de Paris, a trabalhar no Hôpital Necker (Hôpital des Enfants Malades), revestiu-se do maior significado científico para a Medicina.
Mas o grande avanço relativamente à Trissomia 21 ainda estava para acontecer. Até final da década de setenta do século passado, apesar dos importantes avanços científicos, não tinha havido uma compreensão global da doença, nem um interesse pela resolução dos problemas concretos das crianças, adolescentes e adultos por ela afectados. Este importante e glorioso papel iria estar cometido a um pediatra alemão, mais tarde naturalizado americano: o Prof. Sigfried Pueschel. A ele se deve o estudo sistemático da doença Trissomia 21. Todos os problemas significativos foram objecto de uma rigorosa e criteriosa investigação, modelar quanto ao método e exemplar quanto aos aspectos éticos.
Do Prof. Pueschel, enquanto pessoa, sabe-se muito pouco. Sabe-se que o Prof. Pueschel nasceu na Alemanha na década de trinta do século XX. E que cresceu numa Alemanha depauperada, devastada e humilhada na sequência do processo da Segunda Grande Guerra Mundial. Aos dez anos de idade, em 1945, integra a tristemente célebre fuga da população alemã da Silésia, antigo território alemão a leste, para a Alemanha ocidental, Trabalha, desde os dez anos, como servente da construção civil e, à noite, como ajudante de padeiro. Na década de 50, faz todo o liceu num só ano e ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Tübingen, cidade histórica e universitária alemã bem conhecida pela excelência da sua academia. Durante os três anos que iria passar em Tübingen, trabalhou, todas as noites, como ajudante de padeiro, a fim de poder custear os seus estudos. No quarto ano da Faculdade, transita para Dusseldorf, onde viria a concluir a licenciatura em Medicina com as mais altas classificações.
Ainda no ano da sua licenciatura, candidata-se a um estágio clínico, com a duração de doze meses, no conceituado Hospital Pediátrico da Universidade de Harvard (Boston, Estados Unidos da América). Não mais regressaria à Alemanha, excepto para visitas de índole familiar.
Em Harvard, faz dois doutoramentos: um em pediatria e outro em genética. Tira, depois, em regime pós-laboral, o curso de Direito. Casou com uma psicóloga peruana e teve quatro filhos: dois rapazes e duas raparigas. O mais novo, Chris, nasceu com Trissomia 21.
Em meados da década de sessenta, o Prof. Pueschel é convidado para Professor de Pediatria da prestigiada Universidade de Brown (considerada como uma das melhores Faculdades de Medicina dos Estados Unidos da América), e para, em acumulação, Director do Centro de Desenvolvimento do Hospital Pediátrico de Rhode Island. Seria na qualidade de Pediatra Desenvolvimentalista e de responsável pelo Centro de Desenvolvimento que iria desenvolver o seu útil e fecundo trabalho.
O Prof. Pueschel esteve quatro vezes em Portugal. A primeira foi em 1997, por minha sugestão, a convite do Prof. David Andrade (notável médico dentista e professor universitário Portuense, que tem desenvolvido um trabalho pioneiro, a nível mundial, no âmbito da expansão do maxilar superior e da subsequente redução da exposição lingual em crianças com Trissomia 21), a propósito de um congresso por si organizado na sua terra natal. Após a sua comunicação magistral, tivemos a oportunidade de falar sobre vários assuntos de interesse comum. Em determinado momento, perguntou-me qual era, para mim, o traço de carácter mais marcante das crianças com Trissomia 21. Sem hesitar, repostei que era a ternura. Os olhos dele brilharam e ficou, por um longo período, sem dizer nada.
Após o seu regresso a Providence, Rhode Island, iniciámos uma regular troca de correspondência. No final de Agosto de 1998, recebi uma carta pungente, a contar-me a morte do seu filho Chris, e que não resisto a transcrever:
Caro Miguel,
Torna-se muito doloroso escrever esta carta, pois é assaz difícil encontrar as palavras adequadas para expressar a minha mágoa e tristeza. O meu filho Christian, que tanto amávamos, morreu.
Eu e o Chris estávamos de visita às minhas filhas Pamela e Jeanette, em Phoenix. Fomos primeiro a Dallas, a fim de podermos participar na Convenção da National Down Syndrome Association. Estávamos num Hotel de Dallas, quando o Chris teve um colapso. Foi levado, de imediato, para a urgência do Baylor Hospital, onde viria a falecer no Domingo, nove de Agosto de 1998.
Chris era a luz da nossa família. Ele deu, sem dúvida, a direcção para a minha carreira profissional e pessoal. Mas ele era, também, a razão da minha própria existência desde a morte da minha mulher. Nós gostávamos muito um do outro. Chris era a pessoa mais terna do mundo e o seu amor irradiante tocava quem quer que o conhecesse. Será extremamente difícil viver sem ele.
Embora todos sintamos muito a falta dele, tenho a certeza que ele está agora a descansar, em paz, nos braços da sua mãe.
Sig
Em 1999, eu e mais três colegas fomos surpreendentemente aceites para realizar um curto estágio de pós-graduação em Rhode Island, sob a sua orientação (é raríssimo aceitar estagiários, sobretudo estrangeiros, já que o seu centro é demandado, constantemente, por candidatos de toda a América). Abriu-nos inúmeras portas e visitou, connosco, escolas, instituições e lares. Durante todo o período do estágio, acompanhou-nos de uma forma incomparável. Fiquei muito impressionado com o facto de os colaboradores do Prof. Pueschel dizerem, não sei se por graça, que ele gostava mais das crianças com Trissomia 21 do que das outras.
Na sequência deste estágio, convidámos o Prof. Pueschel a deslocar-se a Portugal no verão de 2000. Aceitou, entusiasmado, mas não na data sugerida, já que em Agosto, o seu mês de férias, se deslocaria ao México para, como voluntário, trabalhar, como servente da construção civil, na edificação de casas para cidadãos locais desfavorecidos.
Desta forma, antecipámos para Maio do mesmo ano a realização do congresso, subordinado ao tema genérico da Trissomia 21, e que viria a ter lugar em Évora. Voltou a fazer uma conferência magistral. Apesar de ser protestante, pediu-me para visitar Fátima. O seu enorme despojamento material voltou a impressionar-me. Falou-me da sua infância difícil. Tive, então, a oportunidade de lhe perguntar a razão por que, contrariamente a todas as expectativas, nos tinha aceite para estagiar com ele e naquele que é considerado como um dos melhores Centros de Desenvolvimento do mundo. E ele respondeu: ” é que nós temos uma grande paixão em comum: as crianças com Trissomia 21″.
Há uns anos atrás, pediram-me para apoiar uma grávida com um feto com Trissomia 21. A história era simples: a gravidez foi resultado de uma relação amorosa fortuita. Às trinta semanas de gestação, foi detectada, na ecografia, uma arritmia cardíaca e, pouco depois, uma malformação cardíaca grave. Fez-se uma amniocentese e o resultado foi: Trissomia 21.
Às trinta e cinco semanas de gestação, a senhora apareceu-me na consulta. Estava claramente deprimida, atormentada, denotando um sofrimento psicológico evidente. Vinha acompanhada pela sua mãe, a avó do futuro bebé, a quem chamarei, a partir de agora, D. Zulmira.
A D. Zulmira, aí com uns sessenta anos de idade, era uma mulher simples e uma verdadeira força da natureza. Era ela quem falava e fazia perguntas, tentando, a todo o custo, confortar a filha. Confesso que este tipo de consultas me é muito penoso e ingrato de fazer. Que argumentos poderemos utilizar nestas situações? Um discurso muito positivo, desajustado da realidade? Um discurso negativo, menos optimista e cruel? Bom, mas alguém tem de fazer este trabalho. Bastante constrangido e embaraçado, quando tentava começar a minha intervenção, a avó interrompeu-me e virando-se para o monitor do meu computador, onde gentilmente o meu chefe tinha fixado a fotografia do meu filho mais novo, disse com um ânimo e uma alegria inigualáveis: -“olha aquele menino no computador, que lindo! Vês, o nosso também vai ser assim.”
Senti um calafrio. Mas, a mãe teve, pela primeira vez um sorriso. Fiquei silencioso por instantes. Numa atitude claramente controversa e eticamente criticável, decidi não repor a verdade e deixei que ficassem naquela doce ilusão.
Volvidas menos de seis semanas, observei novamente a família, desta vez com o bebé. A mãe parecia outra. Estavam muito bem adaptadas. A avó continuava a ser uma verdadeira fortaleza moral. Penso que esta família, sobretudo a avó, descobriu, precocemente, que o bebé, o Emanuel, embora com um aspecto físico e comportamental peculiar, era, por dentro, e porque não dizê-lo, por fora, tão bonito como a criança representada na fotografia do computador.
Fui acompanhando o desenvolvimento do Emanuel. Aos dezassete meses já andava sozinho e aos dois anos e meio já dizia pequenas frases. O Emanuel era o ai Jesus da D. Zulmira. Era ela, mais do que a própria mãe, quem executava o Programa de Intervenção e o acompanhava às consultas. Antes dos seis anos de idade, o Emanuel já lia silabicamente e estava, perdoem-me a imodéstia, um primor.
Pelos sete anos, estava o Emanuel no primeiro ano, deu-se uma tragédia: na sequência de uma Sépsis Meningocócica, o Emanuel veio a falecer num dos hospitais da capital. A D. Zulmira ficou verdadeiramente inconsolável, triste e não voltou a ser a mesma. Foi acompanhada, inclusivamente, por psiquiatras, que não conseguiram encontrar uma cura para o seu mal de alma. Um mês exacto depois da morte do Emanuel, fui surpreendido pelo falecimento da D. Zulmira. Por trombose cerebral, garantiram os médicos.
A Drª. Teresa era uma pessoa muito especial. Da sua vida anterior pouco se sabia. Era uma gestora de sucesso e trabalhava numa multinacional. Na sequência de uma relação pouco convencional, a Drª. Teresa ficou grávida, pela primeira vez, aos trinta e oito anos. Foi-lhe oferecida a realização de uma amniocentese, mas recusou. Às vinte semanas de gestação, foi detectada, no feto, uma cardiopatia estrutural muito típica e evocadora da Trissomia 21, e, contra tudo e contra todos, recusou-se, novamente, a fazer uma amniocentese.
O bebé quando nasceu apresentava todas as características físicas da Trissomia 21 e o diagnóstico desta doença genética veio a confirmar-se pouco depois. Aceitou, como ninguém, a doença, e sobretudo as diferenças do Nuno (era assim que se chamava o bebé). Sofreu imenso, tenho a certeza, como todas as mães quando confrontadas com uma vicissitude desta dimensão. Mas sofreu com tão grande contenção que a todos comoveu.
A Drª. Teresa ajudou muito a associação. Um dia, ao contrário do que era habitual, vi-a muito triste. Ela abriu-se comigo: nessa mesma manhã tinha sido informada de que estava com um cancro da mama. Fiquei muito impressionado com esta notícia. Pensei, de imediato, no futuro do Nuno, então com nove meses de idade.
Uma semana antes da operação cirúrgica da Drª Teresa, o Nuno entrou em insuficiência cardíaca e foi operado ao coração de urgência. A situação era muito complicada e já não foi possível fazer nada. O Nuno acabou por morrer no bloco. A Drª. Teresa reagiu muito mal, com uma grande depressão. Recusou-se a ser operada e a fazer quimioterapia e radioterapia. Tentei demovê-la, mas nunca consegui que ela encarasse uma alternativa. Menos de doze meses depois, já em estado terminal, foi internada no hospital e ainda a visitei algumas vezes. Encontrei-a muito resignada, apaziguada e, pareceu-me, até feliz. Tentei saber por que tinha desistido de viver; mas, ela, com uma grande suavidade e sabedoria, desviava-se do assunto, e punha-se a falar das crianças com Trissomia 21 e dos problemas da associação. Na última vez que a vi, pouco falou, mas disse-me, já com uma voz titubeante, que estava com muitas saudades do seu Nuno.
A Drª. Teresa morreu nessa semana, segundo os meus distintos colegas, por adenocarcinoma da mama metastizado.
Sem querer negar a evidência clínica que fundamenta as causas das mortes da D. Zulmira e da Drª. Teresa, tenho, para mim, uma teoria diferente sobre a matéria: o que aconteceu é que elas morreram de amor pelos seus meninos.
A Vânia vive numa pequena cidade de província. Apesar de ser portadora de Trissomia 21, foi sempre muito bem aceite pelos seus pares. Andou, sozinha, pelos vinte e dois meses de idade. E começou a falar bem cedo, pouco depois de fazer um ano de vida. E pelos quatro anos já tinha adquirido o princípio alfabético, primeiro passo para a aprendizagem convencional da leitura. E aos cinco anos de idade já lia as sílabas directas. Quando entrou no primeiro ano, aos seis anos de idade, só ela, de entre todos os meninos, sabia ler. Sempre foi muito ajuizada: nada de comportamentos bizarros, diferentes das outras meninas. Aliás, nunca gostou de dar nas vistas, de se expor. Era bem tímida, embora brincasse muito bem com as coleguinhas, sobretudo com as mais calmas. À medida que crescia, as dificuldades nas aprendizagens, sobretudo as mais abstractas, como a matemática e a composição de textos, foram-se tornando mais evidentes. Nos desempenhos académicos susceptíveis de alguma automatização, como a leitura e as operações matemáticas básicas, a coisa lá ia andando. Mas, quando as actividades exigiam um discernimento mais complexo, a Vânia apresentava sérias dificuldades.
Quando ingressou no quinto ano da escolaridade, os responsáveis pedagógicos da nova escola entraram literalmente em pânico. Mas, como se veio a verificar, não havia razões para tanto. Assim, por sugestão da equipa técnica que sempre a acompanhou, especializada no seguimento destas crianças, foi desenhado um currículo funcional muito flexível e criativo: a Vânia frequentava as disciplinas que muito bem entendesse, independentemente dos seus conteúdos, mesmo que claramente inatingíveis. Os tempos restantes seriam ocupados com disciplinas mais acessíveis, como a educação musical, a educação física ou a educação visual e tecnológica, mesmo que isso obrigasse à frequência de aulas destinadas a outras turmas do mesmo ano ou do ano seguinte. Assim, a Vânia, embora pertencesse à sua turma, poderia assistir a aulas de outros grupos, conquanto os conteúdos fossem os melhores adaptados às suas características e necessidades. Adicionalmente, tinha um apoio de educação especial destinado, essencialmente, a solidificar as aprendizagens básicas de leitura, escrita e cálculo. E também participava em todas viagens de estudo e actividades extra-curriculares da escola, como o Clube de Teatro, a Oficina de Fotografia e o Atelier de Danças Tradicionais.
Pelos dezassete anos, a frequentar o nono ano, houve uma modificação súbita do comportamento: ficou menos interessada pela escola e pelas suas actividades; parecia andar sempre tristonha, sem se rir ou participar nas conversas; começou a ter dificuldades em adormecer; o apetite, até então muito bom e pouco selectivo, perdeu-se; andava mais irritadiça, impaciente e desatenta; perdeu o interesse pelas actividades de que mais gostava, como as telenovelas; e até começou, imaginem, a falar da morte. Fechava-se no seu quarto, onde ficava a chorar por longos períodos. Os pais, preocupados, consultaram um médico que diagnosticou uma depressão. A Vânia foi medicada e passou a receber um apoio psicológico. Mas, volvidos três meses, as queixas não se alteraram e, aparentemente, até foi notado um discreto agravamento. Pediram, então, a ajuda a um médico muito familiarizado com as alterações desenvolvimentais e comportamentais dos adolescentes com Trissomia 21. Depois de colher a história, para além de concordar com o diagnóstico de depressão anteriormente formulado, o médico aventou a hipótese de esta perturbação poder estar relacionada, entre outros factores, com uma situação de grande isolamento no espaço escolar, associado à consciencialização de que ela, Vânia, era diferente das colegas. Foi-se estudar esta hipótese e descobriu-se, realmente, que a Vânia não acompanhava o grupo: não era convidada, como antigamente, para a casa das amigas; não ia às festas ou aos almoços do pessoal; e, pior que tudo, não era convidada a partilhar as pequenas conversas, informações e intrigas típicas de um grupo de adolescentes. Em suma, foi posta de lado. Tudo isto porque ela, talvez, não tivesse capacidade para partilhar, com reciprocidade, todos os pequenos detalhes da liturgia grupal. Ou talvez porque as suas colegas sentissem, se não vergonha, pelo menos incómodo com a sua visível deficiência. Enfim, perdeu, abruptamente, o sentimento de pertença a um grupo. E isso entristeceu-a muito.
Conscientes de que a solução não passaria pelo reingresso da Vânia no grupo, uma vez que ele se dissolveria, previsivelmente, no final do ano lectivo, foi decidido desenhar um programa de transição para a vida adulta, com menor componente lectiva e mais centrado em actividades ocupacionais no espaço extra-escolar, já prenunciadoras de uma futura orientação vocacional. Os resultados não poderiam ter sido melhores: rapidamente recuperou a alegria de viver. Na escola, os professores aprenderam duas lições: que as pessoas com deficiência poderão ter consciência das suas diferenças; e que os docentes têm de estar mais atentos às dinâmicas dos grupos de jovens.
Hoje com dezanove anos, a Vânia, completamente restabelecida, está a trabalhar, a tempo inteiro e com contrato definitivo, numa conhecida firma de advogados. É, dizem, a mais feliz e alegre das funcionárias….
A Filomena sempre foi uma vivaça. O pediatra, lá na maternidade, preveniu os pais que a miúda nunca seria nada na vida porque tinha síndrome de Down. A verdade é que a Filomena andou pelos catorze meses, e, antes de completados, os seis anos de idade já lia de forma bem escorreita. Excelente intervenção, diziam alguns. Mas a verdade é que miúda era mesmo boa. Quando acabou o quarto ano, fazia, com facilidade, contas de dividir. Os pais não cabiam em si de contentes e, para comemorar, a passagem para o segundo ciclo, fizeram uma festa de arromba, com foguetório e tudo. No seu quinto da escolaridade, tinha ela acabado de fazer doze anos, a escola, com a prestimosa ajuda de um Centro de Desenvolvimento, proporcionou-lhe um excelente currículo funcional. Deste modo, a par do reforço das competências académicas básicas, como a leitura, a escrita e o cálculo, a Filomena iniciou o contacto com algumas tarefas típicas da vida adulta, como sejam as actividades próprias do refeitório, da biblioteca, da reprografia e das salas de informática. Mais tarde, já no sétimo ano, começou a sair da escola e a contactar com algumas empresas da comunidade local. E foi assim que a Filomena, já com dezasseis anos de idade, foi parar a uma creche. Foi um deslumbramento total. Era a primeira a chegar à creche e colaborava, alegremente, na recepção da miudagem. E depois, sempre muito divertida, eufórica até, dava o pequeno-almoço à criançada, no meio de uma grande algazarra. E, logo a seguir, participava, com grande entusiasmo, nas tarefas pedagógicas definidas pela educadora-chefe. E, à hora do almoço, era vê-la atarefada a ajudar no refeitório (e também a surripiar qualquer coisinha para comer às escondidas). Na hora da sesta, conseguia, como ninguém, adormecer os pirralhos. Depois de acordada a rapaziada, voltava a envolver-se, alegremente, nas actividades pedagógicas programadas até que, já depois da merenda, os pais vinham buscar os garotos. Saía estafada, mas com uma satisfação imensa. Nunca ninguém a tinha visto tão realizada e feliz. E assim se manteve por dois anos, até que a Directora, impossibilitada de celebrar um contrato de trabalho definitivo, teve de pedir à Filomena para deixar de colaborar e de frequentar a instituição. Foi um choque terrível e a Filomena exibiu, claramente, os sintomas e os sinais de uma depressão grave: estava sempre triste, melancólica, muitas vezes a chorar; perdeu o interesse por tudo, mesmo pelas telenovelas de que tanto gostava; ficava interminavelmente na cama, apática, sem vontade de se levantar; perdeu o apetite, mesmo por guloseimas; e deixou de conseguir dormir como antigamente. Os pais, assaz preocupados, resolveram, eles próprios, criar um pequeno negócio para ocupar a Filomena. Optaram por montar uma pequena mercearia de bairro, uma mercearia social, digamos. Com a ajuda de uma Associação de Pessoas com Deficiência e de um conhecido Grupo de Distribuição Alimentar, a mercearia lá abriu, com o objectivo, sobretudo, de proporcionar uma actividade ocupacional e não um emprego formal. A orientação da loja ficou entregue a uma senhora que foi referenciada pelo Fundo de Emprego. No início, as coisas não foram fáceis e ela não manifestou grande entusiasmo, Tinha muitas saudades da canalha. Mas com o andar do tempo, habituou-se e, hoje, é a alma do negócio, É com ela que os clientes gostam de lidar e, até, de pedir conselhos. Quando, por qualquer motivo, ela não vem trabalhar, as vendas caiem a pique. É tão querida pela freguesia, que muitos clientes dizem que a pequena mercearia de bairro, apesar de os produtos nada terem de especial, é a melhor do mundo…
O António nunca foi bem compreendido. O seu aspecto estranho não enganava ninguém. Nem os seus gestos e a sua maneira de estar. Quando nasceu, ninguém teve dúvidas que o António era mongolóide. E não era dos melhores casos. Falou sempre muito mal. Ainda hoje, aos trinta e cinco anos, a sua linguagem é telegráfica, isto é, sem partículas de ligação e muito pobre em adjectivos. E nunca foi simpático, quente nas relações humanas. A mãe teve-o aos quarenta e quatro anos e, ainda por cima, foi a sua primeira e única gravidez. O pai, homem mais velho, morreu quando o miúdo tinha sete anos de idade. Apear de o António não ser nada fácil, bastante birrento até, a mãe adorava-o. Vivia para ele. Quando chegou o fim da adolescência, várias vozes avisadas aconselharam a mãe a colocar o António numa instituição para deficientes, se possível com a valência de lar residencial. A mãe recusou sempre estas sugestões, que considerava indignas do ponto de vista dos afectos e da sua responsabilidade social, e decidiu que o seu filho, melhor ou pior, viveria com ela. Seriam uma família. Uma família pequenina, mas uma família. E lá ia para todo o lado, acompanhada do filho. Até que um dia, na sequência de uma doença de curta duração, a senhora morreu. Para o António, disseram os especialistas consultados, não haveria quaisquer problemas decorrentes da morte da sua mãe: a percepção da realidade nas pessoas com Trissomia 21 está distorcida, pelo que não percebem bem essa coisa da morte, mesmo de pessoas muito chegadas. Sem família, as assistentes sociais lá conseguiram colocar o António num lar para deficientes. O lar, com excelentes condições, parecia a solução possível e, porque não dizê-lo, ideal. Mas faltava-lhe qualquer coisa. Talvez ele tivesse dado conta que não havia a presença, o carinho, a preocupação, em suma, o amor da sua mãe. O António, apesar de muito bem tratado, temos de o reconhecer, deixou de falar, diria de comunicar, de comer e de ver televisão, a sua ocupação preferida. Progressivamente, denotando um grande sofrimento, deixou de responder a quaisquer estímulos, até que um dia foram dar com ele morto. Por enfarte de miocárdio, segundo o resultado da autópsia. Mas a D. Manuela, auxiliar experiente e sábia, disse que não: o António morreu foi de tristeza.
Há mais de vinte e tal anos atrás, quando eu e a minha mulher nos dirigíamos para a maternidade, estávamos felizes e pouco apreensivos. A gravidez tinha decorrido sem intercorrências significativas, embora a bebé se mexesse pouco, e não havia razões para grandes preocupações. Eu estava na sala de reanimação e pude, desde logo, de uma forma inequívoca, aperceber-me de que a Teresa apresentava estigmas físicos de Trissomia 21.
Foi um choque indescritível e, sem dúvida, o momento mais difícil da minha vida. No dia seguinte, ainda tentei negar o diagnóstico, invocando as muitas semelhanças físicas entre a Teresa e alguns dos nossos familiares. Nas semanas que se seguiram, eu experimentei um sentimento de profunda revolta contra tudo e contra todos.
Revolta contra os médicos, contra os políticos, contra a sociedade, contra o sistema educativo, contra as agências sociais, contra os hospitais, contra o sistema fiscal, contra os padres, contra Deus, enfim contra tudo.
Lentamente, progressivamente, comecei a aperceber-me de que a Teresa existia e que não havia razões para os meus sentimentos de revolta. Ela trocava o olhar comigo. Ela começou a sorrir para mim. Descobri, então, um novo mundo. Descobri que a Teresa era, apesar das suas peculiaridades físicas, comportamentais e emocionais, uma criança como as outras. Trapalhona, é certo.
Comecei, então, a aperceber-me que, mais importante do que as aquisições psicomotoras, do que as competências ou do que as habilidades, era gostar dela e rir das suas trapalhices.
Hoje, sobretudo quando vejo a sua inigualável felicidade e gosto de viver, sinto-me profundamente envergonhado com os sentimentos que manifestei no período que se seguiu ao seu nascimento.
Quando alguém bate à porta da nossa casa, seja um familiar, uma visita, um profissional de inquéritos de opinião ou um mendigo, a Teresa mostra, em todas as ocasiões e circunstâncias, uma gentileza e uma afabilidade inexcedíveis. Adicionalmente, consegue perscrutar, com uma facilidade surpreendente, os estados de espírito dos seus interlocutores: se estão cansados, indispostos, tristes, aborrecidos, alegres, zangados, etc,…, discriminando, com uma grande precisão e sentido de oportunidade, as mais subtis cores da complexa paleta emocional de cada um. Interessa-se, genuinamente, pelas pessoas e pelos seus pequenos problemas concretos. Fica muito impressionada com os motivos de preocupação das pessoas, sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. E tenta, sempre com uma grande tenacidade, encontrar soluções para os problemas, o que, amiúde, anima as pessoas e, não raramente, as deixa sinceramente comovidas.
Nas lojas, pede pouco para si e não exibe grandes sinais de vaidade. Mas quer comprar inúmeros presentes para oferecer aos outros, sejam irmãos, amigos ou simples conhecidos. E há sempre uma grande adequação das prendas aos destinatários, conseguindo intuir, de uma forma admirável, sobre os gostos e as preferências destes.
No supermercado (para além de querer comprar todas as gulodices), tenta, novamente, meter no carrinho das compras o maior número de prendas para os amigos. E abre um grande sorriso para quem quer que olhe para ela.
E quando chega à caixa registadora, para além de deixar passar para a frente as pessoas com poucos artigos, quer saber o nome da operadora, fazendo-lhe umas quantas perguntas pessoais (a que horas fecha o estabelecimento, se é casada, se tem filhos e como se chamam,…).
Nos desportos e actividades competitivas, não quer ganhar a todo o custo e não se importa de perder. Quando algum parceiro ou adversário cai e se magoa, ela interrompe a actividade e, de imediato, ajuda-o, indiferente às pressões dos parceiros da equipa para se aproveitar das circunstâncias. Quando, numa situação de jogo, é necessário ficar alguém de fora, ela toma a iniciativa de se oferecer para observadora.
Na rua, é delicada com todos. A um qualquer cumprimento, ou mesmo a um simples olhar, ela retribui com um sorriso aberto e franco, numa manifestação de incomparável simpatia e amabilidade. Reage bem, sem ressentimentos, às palavras, menções e actos menos agradáveis a seu respeito, fingindo não compreender. Esquece, muito rapidamente, as afrontas e as tentativas de exclusão!
Dá tudo o que tem. Se alguém, nomeadamente os irmãos ou os amigos, cobiça os seus haveres, ela dá-los, de imediato, e sem hesitações. Não conhece o significado da palavra inveja. Nunca sentiu inveja. Nunca desejou mal a ninguém.
Está sempre alegre, bem-disposta e contente. Quando chego a casa cansado, ela senta-se a meu lado e, com uma grande ternura, faz-me perguntas sobre o meu trabalho, sobre as pessoas e os seus problemas. Quer saber pormenores e, quase sempre, avança soluções, que muitas vezes, tenho de confessar, segui. Por vezes, à noite, no sofá, numa manifestação de incomparável ternura, sussurra-me ao ouvido algo que nem a minha mulher, hoje em dia, se lembraria de dizer: “Oh Pai, tu és cá um borracho”.
A Teresa tem, sem dúvida, um défice cognitivo, ou seja, um quociente de inteligência inferior ao esperado para as jovens adultas da mesma idade. Mas será isto realmente importante? Sei, também, que, em contrapartida, o seu quociente de alegria, ou melhor, o seu quociente de felicidade, ou, se preferirem, o seu quociente de bondade, é muito superior à média. Ela manifesta, permanentemente, um grande despojamento material. E sabe, como ninguém, perscrutar e confortar as almas. Tal como já disse, sinto-me, hoje, sobretudo quando vejo a sua inigualável felicidade, alegria, gosto de viver e generosidade, profundamente envergonhado (e embaraçado) com os sentimentos que manifestei no período que se seguiu ao seu nascimento. Perguntam-me, muitas vezes, se é possível falar da espiritualidade das crianças com diferenças. A resposta é afirmativa: apesar das suas inúmeras particularidades, as crianças com deficiência possuem, de resto como todas os meninos, uma alma do tamanho do mundo. Desculpem-me a franqueza e a falta de modéstia, mas minha filha Maria Teresa é, muito provavelmente, um anjo.