COVID-19 e a Trissomia 21
As pessoas com trissomia 21 apresentam, pensa-se, um maior risco de infeção pelo SARS–CoV–2, embora esta afirmação careça, no tempo presente, de validade científica objetiva. Esta maior vulnerabilidade, não só para a contração da infeção a SARS–CoV–2, mas, também e sobretudo, para a gravidade da mesma, poderá estar relacionada com, entre outros, os seguintes fatores:
- As pessoas com trissomia 21 têm uma prevalência muito aumentada de défices da imunidade, fenómeno abundantemente estudado por diversos especialistas;
- As pessoas com trissomia 21 apresentam, quase universalmente, uma forma moderada a grave de hipotonia muscular (geradora de uma menor capacidade de drenagem das secreções bronco-pulmonares);
- As pessoas com trissomia 21 têm uma muito maior incidência (e prevalência) de alterações anatómicas e funcionais significativas, mormente cardíacas, renais, pulmonares, hepáticas e de outros órgãos e sistemas, geradoras de comorbilidade relevante;
- As pessoas com trissomia 21 apresentam uma prevalência muito aumentada de obesidade, reconhecido fator de risco para as infeções, nomeadamente pulmonares, e para um estado de inflamação crónico;
- As pessoas com trissomia 21, por razões ainda não bem conhecidas, experimentam um processo de envelhecimento precoce, expresso, não raramente, sobretudo a partir dos 35 de idade, por manifestações clínicas compatíveis com a Doença de Alzheimer;
- As pessoas com trissomia 21 exibem, amiúde, comportamentos de risco motivados pelo défice cognitivo, expressos por uma menor capacidade de adoção de medidas de proteção (afastamento físico do interlocutor adequado, utilização adequada de máscaras faciais, lavagem das mãos eficaz e regular, etc., …);
- Nas pessoas com trissomia 21, sobretudo naquelas com idade superior a 18 anos, há, reconhecidamente, uma elevada taxa de institucionalização, facto potenciador da transmissão do agente patogénico;
- Adicionalmente, num cenário de escassez de oferta de cuidados de saúde, designadamente a disponibilidade de cuidados intensivos, as pessoas com trissomia 21, poderão ser preteridas no acesso aos mesmos.
De acordo com um estudo conduzido pela T21 Research Society, datado de 27 de maio de 2020, os sinais e os sintomas da Covid-19 numa população com trissomia 21, recrutada em diversos países (entre outros, Espanha, Grã-Bretanha, Reino Unido, Estados Unidos da América, França e Brasil) foram sobreponíveis aos da população geral, designadamente a febre, a tosse e a dispneia. Curiosamente, os sintomas nasais foram mais frequentes nas pessoas com trissomia 21, particularmente naquelas com idades abaixo dos dezanove anos. De acordo com este estudo, a taxa de letalidade na população com trissomia 21 aumenta, de forma significativa, a partir dos 40 anos de idade, mais cedo, portanto, do que na população geral. A taxa de letalidade, tal como acontece na restante população, é maior nos indivíduos do sexo masculino. Apesar das inúmeras limitações do estudo em causa, verificou-se que, nos mesmos países, entre os sujeitos hospitalizados com idades compreendidas entre os 40 e os 49 anos, a taxa de letalidade foi de 12% na população com trissomia 21 e de 5,45% na população geral. Em sujeitos com idades entre os 50 e os 59 anos de idade, a taxa de letalidade foi de 48,8% e de 10,28%, respetivamente, naqueles com trissomia 21 e sem trissomia 21. A taxa de letalidade relativa a sujeitos com trissomia 21 e sem trissomia 21 com idades compreendidas entre os 60 e os 69 anos foram de, respetivamente, 72,7% e de 22,7%. Os dados dizem respeito, relembramos, a sujeitos hospitalizados. Este estudo foi realizado a partir de uma amostra relativamente pequena e são desconhecidas muitas das outras variáveis clínicas e epidemiológicas relevantes, como a comorbilidade preexistente, os critérios para o internamento hospitalar, o acesso a cuidados intensivos, as terapêuticas efetuadas, etc., ….
Em Portugal, onde não existem, como é bem consabido, estatísticas fidedignas sobre o assunto, estimamos que haja cerca de 8.000 a 9.000 pessoas com trissomia 21, ou seja, por outras palavras, existirão cerca de 8 a 9 indivíduos com trissomia 21 por cada 10.000 habitantes (esta informação carece de confirmação, ou seja, de validade científica). Isto significa que, no nosso país, de entre as 50.410 pessoas infetadas pelo SARS–CoV–2 (dados da DGS relativos ao dia 28-07-2020), poderá haver (ou ter havido) cerca de 42 a 43 pessoas com trissomia 21 com Covid-19. Relativamente, à taxa de letalidade na população portuguesa com trissomia 21 causada pela infeção a SARS–CoV–2, os dados são completamente desconhecidos, tal como a dimensão e a qualidade das diversas variáveis, clínicas e outras, implicadas no processo, como são exemplos a estrutura etária da população em causa, o acesso a cuidados hospitalares, mormente a cuidados intensivos, as terapêuticas efetuadas, etc.
Apesar de tudo, acreditando que este é o melhor conhecimento científico possível no presente, depois de estudada a bibliografia médica internacional disponível e recente, embora muito escassa, sobre a infeção a SARS–CoV–2 na população com trissomia 21, recomendamos, genericamente, para as pessoas afetadas por esta doença genética:
- Execução, rigorosa e ativa, das recomendações emanadas pela Direção Geral de Saúde, como, entre outras:
- Confinamento físico (dito, impropriamente, social); para que esta recomendação possa ser concretizada e tenha, por consequência, efeitos práticos, os sujeitos com idade superior a 30 anos deverão poder ser acompanhados, em permanência, por um dos cuidadores ou por um seu substituto; assim, a um dos seus cuidadores (ou ao seu substituto) deverá ser dada a possibilidade de teletrabalho ou, se inexequível, garantido o direito de acompanhamento com faltas justificadas e remuneradas; caso seja necessário efetuar uma saída inadiável, evitar, sempre que possível, o recurso a transportes públicos;
- Afastamento físico dos interlocutores (superior a 2 metros), exceto, se estritamente necessário, no caso específico de cuidadores e de familiares próximos;
- Lavagem frequente das mãos com soluções apropriadas;
- Conquanto exequível, uso de máscara facial em contextos sociais (a eficácia desta medida dependerá, entre outras, de variáveis cognitivas);
- Evitamento rigoroso da partilha de comida ou de utensílios alimentares com outras pessoas durante a preparação, a confeção e o consumo de alimentos;
- Evitamento rigoroso da partilha de objetos de qualquer índole com outras pessoas.
- Interrupção temporária da frequência de lares ou de instituições para apoio a pessoas com deficiência por parte de pessoas com idade superior a 30 anos;
- Manutenção, tanto quanto possível, das rotinas diárias (sono; higiene; roupa; horários das refeições; TV, …);
- Prática frequente e moderada de exercício físico (nas situações de confinamento a uma casa sem jardim ou similar, poderá praticar-se dança, ginástica, etc., …); se permitido, com todas as precauções, fomentar a prática de pequenos passeios a pé, sempre com companhia;
- Alimentação saudável e variada, pouco calórica, com inclusão aumentada de alimentos ricos em vitaminas, oligoelementos e antioxidantes, como frutas e legumes; beber muitos líquidos, sobretudo água;
- Administração de um polivitamínico corrente, que inclua a maioria das vitaminas e dos oligoelementos, em doses estritamente convencionais (doses acrescidas de vitaminas poderão ser contraproducentes e até prejudiciais);
- Cumprimento rigoroso do calendário vacinal recomendado para a trissomia 21;
- Continuidade das terapias recomendadas no âmbito do neurodesenvolvimento e problemáticas afins (terapia da fala; etc.), se necessário e exequível por via digital;
- Tratamento vigoroso de qualquer outra doença entretanto diagnosticada (infeção urinária; furunculose; cárie dentária; gengivite; conjuntivite; etc., …);
- Oferta de um ambiente muito rico e estimulante de um ponto de vista cognitivo e linguístico, a fim de se evitar a ocorrência das diversas e indesejáveis regressões neurodesenvolvimentais, bem como de patologia do foro da saúde mental, sobretudo as perturbações depressivas;
- No caso de serem notadas manifestações clínicas sugestivas de COVID-19, ou seja, de infeção pelo SARS–CoV–2 (tosse; febre; dispneia; adinamia; etc., …), deverá ser estabelecido um contacto, imediato, com o SNS24.
Para fundamentar estas propostas, invocamos os princípios éticos da discriminação positiva e da inclusão social; e, sobretudo, o ideal da valorização das diferenças das pessoas mais vulneráveis e em desvantagem, mormente com perturbações do neurodesenvolvimento intelectual.
Lisboa, 28 de Julho de 2020
Relator: Miguel Palha, Pediatra do Neurodesenvolvimento (Diretor Clínico do Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENÇAS da APPT21)
Signatários do documento:
- Manuela Lucas, especialista em Saúde Pública; INEM
- Paula Pires de Matos, Pediatra do Neurodesenvolvimento; Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças; Clínica Gerações
- Francisca de Castro Palha, Pediatra (Unidade de Neurodesenvolvimento do Departamento de Pediatria do Hospital de Santa Maria, CHULN)
- Nídia Belo, Pediatra; Hospital Beatriz Ângelo
- David Casimiro de Andrade, médico, médico dentista e Prof. Associado com Agregação na Universidade do Porto
- Maria João Vaz Osório Palha, Interna de Pediatria do Hospital de Santa Maria, CHULN; Presidente da Direção da Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21
- Teresa Sereno Ribeiro, Médica Dentista, Aluna de Especialização em Odontopediatria na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto
- Catarina Grande, Médica Dentista, Aluna de Especialização em Odontopediatria na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto
- Ana Queiroga, Médica Dentista, Aluna de Especialização em Odontopediatria na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto
- Joana Ferreira Azevedo, Médica Dentista, Aluna de Especialização em Odontopediatria na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto
- Manuela Baptista, Pediatra do Neurodesenvolvimento (Coordenadora da Unidade de Neurodesenvolvimento do Departamento de Pediatria do Hospital de Santa Maria, CHULN); Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças
- Mónica Pinto, Pediatra do Neurodesenvolvimento (Coordenadora da Unidade de Neurodesenvolvimento do Serviço de Pediatria do Hospital Beatriz Ângelo); Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças; Clínica Gerações
- Artur Varela Sousa, Pediatra do Neurodesenvolvimento; Unidade de Neurodesenvolvimento do Departamento de Pediatria do Hospital de Santa Maria, CHULN; Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças